Questão central do câncer é prevenir casos, diz ex-ministro Temporão
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O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão defende que o enfrentamento ao câncer no Brasil e no mundo deve ir muito além do diagnóstico e do tratamento. Na verdade, para o pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que já foi diretor-geral no Instituto Nacional do Câncer e membro do Comitê Consultivo para o Controle do Câncer da Organização Mundial da Saúde, o eixo central de combate à doença deveria ser a prevenção e a promoção de saúde.
Em entrevista à Agência Brasil, ele destaca que o combate à doença é um desafio também de ordem social e econômica e defende ainda uma reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), para que os municípios passem a se organizar em regiões e, assim, possam atender melhor a pacientes com questões mais complexas, reduzindo a desigualdade regional do país.
Agência Brasil: Recentemente, o senhor publicou um artigo sobre os desafios do câncer no Século 21. Pode explicar quais são?
José Gomes Temporão: Acho que o primeiro ponto a ser destacado é a gravidade do problema do câncer, como um conjunto de doenças. Não é apenas uma doença, são dezenas de tipos diferentes. Em mais de 600 municípios brasileiros, já é a primeira causa de mortalidade, e a projeção da Organização Mundial da Saúde para as próximas décadas é que o câncer vai ultrapassar as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares como principal causa de morte no mundo. O próprio IARC [Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em inglês], que é o órgão da OMS para câncer, projeta 35 milhões de novos casos em 2050, em termos globais. No Brasil, o último número que nós temos do Inca, para o triênio que termina em 2025, é de cerca de 700 mil novos casos por ano.
Quando a gente olha para o Brasil e para os países em desenvolvimento, chama muita atenção que, embora a incidência de casos não seja expressiva em termos globais, 70% das mortes acontecem hoje nos países de baixa e média renda. Então, tem uma questão aí de desigualdade, de iniquidade muito evidente, porque esses países de baixa e média renda não conseguem enfrentar o problema, nem do ponto de vista da prevenção e da promoção [da saúde], nem do ponto de vista do acesso ao tratamento, mesmo com as tecnologias mais tradicionais, como é o caso das quimioterapias, da radioterapia e da cirurgia.
A questão central é que o câncer é um problema multifacetado que transcende muito a medicina. Ele demanda respostas sociais, econômicas e éticas também. Você tem um crescimento acelerado da incidência, da prevalência e da mortalidade que pressiona o sistema de saúde, e o que está colocado para nós é que precisamos de políticas que garantam prevenção, detecção precoce, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos. Não é pouco desafio.
Agência Brasil: E como o senhor acabou de lembrar, não se trata apenas de diagnosticar e tratar a doença.
José Gomes Temporão: Eu quero muito enfatizar uma coisa: o senso comum, o tempo todo, nos puxa para o lado do tratamento, mas o tratamento significa que a doença já está instalada. E, na verdade, o eixo central deveria ser a prevenção e a promoção de saúde. Mas, no caso de câncer, para prevenir, você tem que tratar dos fatores de risco, e você tem que pensar em como reduzir a prevalência do tabagismo, o consumo de álcool, como controlar a obesidade, o padrão alimentar, o sedentarismo, a poluição ambiental. São problemas muito complexos, porque a maior parte deles não depende apenas do campo da saúde. Eles exigem políticas transversais e intersetoriais.
Dizem que isso é "muito complicado", é "muito caro".Os lobbies não permitem, por exemplo, que a publicidade de ultraprocessados para crianças e adolescentes seja proibida. O lobby não permite que os impostos das bebidas açucaradas sejam mais altos, para que elas fiquem caras. Mas esses fatores ambientais causam 90% dos casos de câncer no mundo. Os fatores genéticos são residuais. Aí, todo mundo fica pensando em como se cura, mas a questão central do câncer não é a cura, é evitar a doença. E, pra isso, não tem jeito, você tem que lidar com esses fatores que eu listei.
Agência Brasil: E quando a doença se instala, apesar da prevenção, o diagnóstico precoce ainda é a chave para um bom tratamento?
José Gomes Temporão: O diagnóstico precoce é central, mas, para isso, você tem que ter uma rede organizada. A atenção básica tem que ter capacidade de perceber sintomas iniciais da doença e também fazer aqueles rastreamentos, como o exame periódico para detecção do câncer de colo de útero, a mamografia, o toque retal, o exame de PSA, a colonoscopia.
O Brasil dispõe de uma rede de atenção primária que, hoje, cobre 150 milhões de brasileiros, é a maior rede de atenção primária do mundo, mas com um desempenho muito heterogêneo. Quando você olha em termos de território brasileiro, as diferenças são gritantes, de cobertura e de qualidade, e é cada vez mais difícil você instalar serviços especializados nos municípios das regiões Norte e Nordeste, em comparação com a grande concentração tecnológica para diagnóstico e tratamento das regiões Sul e Sudeste, principalmente.
Já para o tratamento, muitas tecnologias revolucionárias estão sendo trazidas pela biotecnologia, como a imunoterapia, que são moléculas que atacam diretamente determinados alvos dentro das células. Mas esses medicamentos podem chegar a milhões de dólares por paciente, completamente fora de possibilidade de incorporação pelo sistema de saúde dos países em desenvolvimento. E, aí, entra toda a discussão relacionada à dependência tecnológica, políticas de desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação e etc.