A morte do espanto: crônica de uma Pátria prostituída

, atualizado

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Ah, o espanto! Aristóteles, o Velho Sábio de Estagira, sentenciava lá das brumas da antiguidade que o espanto é o assombro diante do desconhecido, o estalo do mistério que nos lança na busca febril do saber, criando o homem, o filósofo, o inquiridor, o insatisfeito. Mas, caros leitores, que pavor nos toma quando, mergulhados no pântano movediço de nosso Brasil, percebemos que esse espanto se extinguiu! Morreu! Foi assassinado, vilipendiado, estuprado em praça pública, e nós, os herdeiros dessa tragédia anunciada, assistimos a tudo com a apatia dos mortos em vida.

O noticiário das últimas semanas, esse espelho sujo de nossa alma nacional, revela um festival de obscenidades que, por mais absurdas, já não nos arranca sequer um bocejo. A Assembleia Legislativa do Rio, essa casa de tolerância e barganha, mandou soltar um parlamentar preso pela Polícia Federal, acusado de atuar contra a investigação do crime organizado. Ninguém pisca. Ninguém grita.

Um ministro do Supremo Tribunal Federal, arcanjo de toga, viaja para a final da Libertadores ao lado do advogado do réu — sim, do réu! — e depois, com a petulância dos deuses menores, avoca o processo para si e decreta o sigilo absoluto. Que mistério diabólico esconde esse pergaminho lacrado? E o Brasil? Apenas boceja.

Nem mesmo o escândalo asqueroso de um tal Vorcaro, despejando quatro milhões em uma sugar baby com laços no tráfico internacional de drogas, consegue arrancar um suspiro de ultraje. E o careca - do INSS -, despejando cinco milhões na campanha do PT, como quem joga migalhas aos pombos? E o filho do Presidente, ungido por uma mesada de trezentos mil, pago pelo mesmo careca? Onde está o choque? A náusea? Sumiram! Mais assombroso: outro ministro, com sua caneta fatal, tira do cidadão comum o direito de pedir o impeachment dos intocáveis de toga. Uma afronta à soberania do povo, uma castração da indignação! E nós? Calados. Mansos. Caducamos.

A centro-direita, por sua vez, é refém e espelho do clã Bolsonaro, e num desatino de Flávio, o filho ungido, declara seu "preço" para desistir. O que é isso senão a mais vil das prostituições políticas, o leilão da decência em praça pública? E o que fazemos? Votamos. Esperamos.

A antiga "Casa dos Espantos", o Congresso, hoje é um hospício generalizado, uma matriz de tudo o que nos corrompe. Lá, o Congresso, cúmplice e corresponsável pela mesma política fiscal que agora critica, aponta o dedo para o Presidente Lula como culpado. Lula, por sua vez, que já em outros tempos declarava não haver corrupção na Petrobrás, repete a mesma fala. Ele já não nos espanta, é verdade.

Mas o que causa um arrepio, um tremor (se é que ainda nos resta tal capacidade) é fazer as contas e descobrir que o Governo torrou cento e setenta bilhões de reais além do arcabouço fiscal. Cento e setenta BILHÕES! Um rombo, uma hemorragia nas veias do país. E, no entanto, a pátria, essa velha senhora prostituída, permanece inerte, apática, sem uma lágrima, sem um grito.Este é o Brasil, meus caros, um país que cambaleia de crise em crise — política, institucional, ética, moral — sem nada resolver, adiando o inevitável para depois das próximas eleições.

Uma realidade: crescemos menos do que precisamos, gastamos mais do que podemos e envelhecemos sem a menor sombra de riqueza na arena internacional. E o que é mais trágico, mais vil, mais abjeto: nada disso nos espanta mais.Quem são os coveiros de nossa alma? Faoro, em "Os Donos do Poder", já desnudava as entranhas pútridas do patronato político brasileiro.

Para ele, a casta política não é um acidente, mas a própria essência de nosso mal: um grupo hermético que usurpa o Estado, transformando-o em butim pessoal e fonte de privilégios. Os "donos do poder" não são a burguesia, mas essa mesma casta política que manobra o Estado, controlando suas instituições como marionetes para perpetuar sua nefasta influência.A verdade, nua e crua: nosso país, órfão do espanto, jaz prisioneiro de uma casta que há séculos o domina. O silêncio, mais ensurdecedor, sela o destino trágico de uma pátria que escolheu a podridão como eterno espetáculo, até que a própria morte, talvez, arranque um derradeiro espanto.

*Professor e cientista político