'A periferia é a chave para as grandes transformações'

Danielle Marques, empreendedora ribeirão-pretana que cresceu no João Rossi, está na lista de pessoas afrodescentes mais influentes do mundo em 2025 e fala sobre sua experiência no Vale do Silício

, atualizado

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A ribeirão-pretana Danielle Marques, fundadora do hub de inovação "Do Silêncio ao Silício", acaba de entrar para a lista do Most Influential People of African Descent (MIPAD) 2025, iniciativa apoiada pela ONU que reconhece as 100 pessoas mais influentes de ascendência africana no mundo. Selecionada na categoria 40 Under 40, Danielle é hoje uma das principais vozes brasileiras na pauta de inclusão, tecnologia e impacto social.

Criada no bairro João Rossi, na periferia de Ribeirão Preto, ela transformou sua trajetória — que vai de uma vaquinha online para visitar o Vale do Silício à criação de um hub que já levou 20 empreendedores negros para imersões internacionais — em plataforma de acesso e formação. Seu trabalho conecta educação, inovação e diversidade, abrindo portas para quem historicamente ficou fora do centro do setor tecnológico.

"Do Silêncio ao Silício é sobre como tiramos essas inovações criadas dentro da periferia e as projetamos em algo muito maior", relata, acrescentando que quem cresce nas periferias, como ela, acaba desenvolvendo habilidades essenciais para empreender. "Mas esse empreendedorismo é movido pela necessidade, na maioria das vezes", conta.

Reconhecida também pela MIT Technology Review, Forbes Under 30 e pelo prêmio Geração Glamour, Danielle pesquisa os impactos da inteligência artificial nas comunidades negras e lidera iniciativas que aproximam jovens periféricos do empreendedorismo digital. Nesta Entrevista de Quinta, ela fala sobre sua trajetória, o futuro da tecnologia e por que acredita que "a periferia é a chave para as grandes transformações". Confira.

A senhorita se tornou uma referência no empreendedorismo. Como essa história começou?

Os primeiros exemplos que tive de empreendedores foram meus pais. Mas, como a imensa maioria dos brasileiros, os negócios eram abertos por necessidade, não por oportunidade. Demorei anos para entender que o empreendedorismo também poderia ser uma identificação de mercado. Crescer em uma comunidade periférica, onde as oportunidades são escassas, me fez buscar soluções e encontrar caminhos.

E quando decidiu empreender?

Trabalhei anos em call center e entrei em uma startup brasileira do setor imobiliário. Fazia atendimento, mas queria crescer. Entendi que minhas habilidades — comuns na periferia — tinham tudo a ver com inovação.

Quando concluí minha primeira graduação e já estava no mercado, senti falta de pessoas negras em cargos de liderança. Mais da metade dos empreendedores do país é negra; no entanto, dados do Sebrae mostram que, em geral, esses negócios são menos lucrativos e têm baixa formalização. Percebi essa realidade e entendi que eu precisava ser um fator de mudança.

Hoje trabalho com diversidade e inclusão em tecnologia. Meu conselho é buscar referências, mentores e usar redes como o LinkedIn para aprender e criar conexões. Pedir ajuda é essencial.

Ser da periferia tornou o processo mais difícil?

A periferia é a chave para as grandes transformações. O que criamos quando temos acesso é revolucionário. Eu trabalho desde os 14 anos. Acredito que não existem pessoas mais aptas a ocupar alguns cargos do que pessoas da periferia, porque a maioria das habilidades requisitadas no mercado de trabalho são comuns no nosso dia a dia para a nossa sobrevivência. A periferia é muito potente nesse sentido, porque estamos o tempo todo criando por conta da necessidade de sobrevivência.

Acredita que a senhorita é um exemplo?

É um desafio, mas o que tem me ajudado é olhar para minha história com orgulho. Porque eu penso "pô, eu limpava o banheiro da balada enquanto os meus amigos da faculdade estavam curtindo a festa. E hoje em dia, eu tenho a possibilidade de curtir a balada com eles". Eu tento olhar pra essa Daniele e falar "que bom que você não desistiu, que você teve coragem". Nesse sentido, sou negra e periférica. Penso que posso ser considerada, sim, um exemplo.

E como surgiu o Vale do Silício nessa história?

Eu estava em transição de carreira, trabalhava no atendimento do Quinto Andar e havia passado no mestrado pesquisando startups negras. Quando percebi que quase nenhuma pessoa negra falava sobre inovação, decidi que queria me tornar especialista na área. Paguei o programa com minhas economias, mas não tinha como arcar com a viagem. Um amigo sugeriu uma vaquinha; relutei, mas escrevi um texto contando minha trajetória. O post viralizou e consegui o valor para viajar.

Como nasceu o projeto Do Silêncio ao Silício?

Voltei do Vale cheia de anotações e preocupada com o impacto da automação sobre trabalhadores periféricos. Do Silêncio ao Silício é sobre como tiramos essas inovações criadas dentro da periferia e as projetamos em algo muito maior, como o Vale do Silício.

Ao mesmo tempo, muita gente queria viver a experiência da imersão, mas não tinha acesso. Minha pesquisa mostrava que apenas fundadores com formação internacional conseguiam investimento, e apenas 5% da população negra chega às universidades americanas. Pensei: por que não criar essa oportunidade?

Reuni amigos, fechamos parceria com a StartSe e lançamos 10 bolsas para empreendedores. A ideia é construir uma comunidade e criar redes para quem nunca foi alcançado por elas.

A senhorita já viveu autossabotagem? Como lida com isso?

Sim, frequentemente. E acredito que isso seja rotina para negros periféricos, e exatamente por isso precisa ser combatido. Às vezes me assusto com a responsabilidade do projeto. Para lidar, revisito minha trajetória: comecei a trabalhar cedo, conciliei estudo com dois empregos, enfrentei desafios grandes. Colocar tudo no papel me lembra que não cheguei aqui por acaso. Tento olhar minha história com orgulho e reconhecer minha coragem.

Quais mulheres te inspiram?

A Viola Davis. A história dela, marcada por violência e racismo, dialoga muito com a minha infância. Ela me lembra que, diante do que já vivi, nenhum caos do dia a dia pode me derrubar. Suas dores transformadas em potência me inspiram profundamente.

Aliás, é nítido como muitas mulheres estão crescendo no setor de inovação e liderando as próprias empresas. Neste ano, inclusive, levamos pela primeira vez uma mulher negra trans na imersão.

E quais os próximos passos?

Existem diversos lugares como o Vale do Silício no mundo — especialmente no Brasil —, então quero conhecer e compartilhar esses ecossistemas.