'Enquanto insistirem em atropelar ritos, haverá confronto'

Lucas Pereira, presidente do Conppac, fala sobre obras iniciadas pela prefeitura sem autorização e analisa situação do Conselho

, atualizado

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À frente do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto (Conppac), o advogado Lucas Pereira combina rigor técnico e postura combativa para denunciar o que classifica como um desmonte da fiscalização urbanística na cidade.

Especialista em Direito Municipal e Efetivação de Direitos Fundamentais pela USP-Ribeirão, e com sólida trajetória na OAB-SP, Pereira descreve um cenário de "chantagem institucional" onde obras de grande porte — como as intervenções na Catedral Metropolitana e no Instituto Federal — são iniciadas à revelia do licenciamento legal.

Nesta entrevista, o presidente do Conppac vai além da crítica burocrática: aponta a "mediocridade" como norma na política local, revela o esvaziamento dos quadros técnicos e detalha denúncias graves que serão encaminhadas ao Ministério Público, incluindo irregularidades na Fábrica de Cultura.

Diante de uma cultura que ainda flerta com o coronelismo e ignora a cidadania participativa, Pereira alerta: enquanto ritos forem atropelados, haverá confronto em defesa da memória de Ribeirão Preto. Confira a íntegra da entrevista.

JORNAL RIBEIRÃO: A população tem uma imagem negativa dos Conselhos, notadamente do Conppac. Qual a causa?

LUCAS PEREIRA - Eu acho que a imagem que se tem, muitas vezes, é uma imagem que não valoriza o trabalho. E não só do Conppac, mas de qualquer conselho. Órgãos de proteção têm que existir. O problema é mais profundo. Isso está enraizado na formação brasileira, especialmente em cidades como Ribeirão Preto, que nasceram aos pés do café, com escravidão, coronelismo e mandonismo. Existe essa cultura de "querer fazer do jeito que quer", sem aceitar controle. O Brasil mudou.

A Constituição de 88 reconhece a autonomia municipal e fortalece a cidadania participativa. Ela coloca o cidadão no mesmo patamar de relevância institucional, criando conselhos nos níveis municipal, estadual e federal. Isso tem custo, porque os conselheiros não recebem salário, mas têm a atribuição de fiscalizar e avaliar atos da administração. E isso incomoda.

Essa participação incomoda a ponto de ser atacada?

Sim. No governo Bolsonaro, por exemplo, houve tentativa de esvaziar conselhos, como o de Cultura e Meio Ambiente, e o STF barrou. O Supremo foi claro: cidadania participativa é um princípio caro ao Brasil. Não dá para passar por cima disso.

Mas há críticas sobre burocracia excessiva.

Algumas críticas têm fundamento. A burocracia é necessária até o ponto em que não vire estorvo. O problema é quando o processo se torna eterno. E isso acontece porque falta gente, faltam técnicos, faltam estudos. A Constituição fala em duração razoável do processo, não em processo eterno. O que estamos vendo, entretanto, não pode ocorrer: é a autodeclaração. O empresário declara que está tudo certo e já recebe licença. Isso é um absurdo. Enfraquecem a burocracia, desvalorizam o servidor e depois jogam a culpa nos conselhos quando dá problema.

O Conselho do Patrimônio sofre mais do que outros?

Sofre, porque a matéria é sensível e transversal. O Conselho de Patrimônio acaba dialogando com quase todos os órgãos da Prefeitura. E há um problema sério de estrutura. A lei garantiu equipe técnica ao conselho, mas hoje temos apenas um arquiteto, que ainda acumula funções. O trabalho precisa ser técnico, embora o colegiado seja político.

Existe interferência política nos conselhos?

Existe uma confusão grande. Muitos conselhos acabam sendo subservientes à Prefeitura por causa da composição. O Conppac foge um pouco disso, assim como o Condephaat e o Conselho Racial. Talvez por isso apanhe mais. Na verdade, a política vive uma era medíocre.

A gente podia até criticar, mas, no começo do século, o sujeito era um coronel em um tempo em que Ribeirão Preto não só pensava, mas se projetava num cenário regional, nacional e internacional. Ela se projetava, ela queria, ela construiu uma identidade. E depois, já mais para os últimos tempos, nós vemos esse apequenamento da nossa política, as nossas políticas de hoje. E uma coisa que temos que reconhecer é que ela é democrática. Independentemente da coloração partidária, a mediocridade se tornou uma norma fundamental na política brasileira. E isso reflete em tudo, inclusive nos conselhos.

E como está a questão eleitoral do Conselho?

As eleições serão em abril. Pedi antecipação do calendário porque a legislação exige que ocorram antes do término do mandato. Minha preocupação é que a Secretaria de Cultura não publique a portaria a tempo, como aconteceu com outros conselhos, que ficaram meses sem mandato válido.

Há risco de partidarização?

Esse é um risco real. Eu defendo que o Conselho não seja espaço de política partidária. Ele já tem agenda própria e sensível. Partidarizar o Conselho prejudica até o próprio Executivo. Mas, infelizmente, quando você mexe com o pessoal da Cultura, no geral, a gente tem dois ou três quadros na sociedade civil que mexem, trabalham com isso, que são muito bons, mas o restante é de uma qualidade deprimente; fico assustado de ver as coisas que o pessoal pensa e faz.

Como é a participação da Prefeitura nas reuniões?

Muito ruim. No governo anterior, todas as cadeiras do Executivo participavam. No atual, secretarias simplesmente não aparecem. O Meio Ambiente não participou de nenhuma reunião. A Cultura tem três cadeiras e só participou uma vez. Isso prejudica o quórum e empobrece o debate. Esse cenário reflete despreparo e falta de valorização. Falta formação. A Prefeitura deveria capacitar seus representantes para entender o papel do Conselho, avaliar projetos e deliberar com qualidade.

Há críticas diretas à Secretaria de Cultura, Maria Eugênia Biffi?

Sim. Reconheço a trajetória pessoal da secretária, mas, como gestora, ela mais avacalha do que fortalece a cultura. Um exemplo simbólico é criar um programa de visita a bens históricos chamado The Walking Tour. Isso é grave. A língua é a primeira trincheira da cultura.

E as obras sem aprovação do Conselho?

Viraram regra. Instituto Federal, Catedral, HC, Praça Schmidt, Costábile Romano. Começam sem projeto aprovado e depois tentam jogar a responsabilidade no Conselho. Isso é chantagem institucional.

Um exemplo: ao começar a levantar documentos, causa espanto constatar que a Casa de Cultura não foi entregue até hoje. A Fábrica de Cultura 2.0 nunca se instalou no local porque o restauro iniciado à época não contemplou as necessidades do projeto, o que deve levar à abertura de um novo processo de restauro. Ou seja, mais dinheiro público será gasto para corrigir erros do passado. Enquanto isso, há no local uma funcionária vinculada à ONG que recebe cerca de R$ 15 mil por mês para permanecer no espaço sem exercer qualquer atividade efetiva.

O recurso vem do Governo do Estado, passa pela ONG e resulta em alguém que permanece o dia inteiro no prédio sem função definida. A situação é conhecida pela Secretaria Municipal da Cultura, que permanece em silêncio, assim como a Câmara de Vereadores. Diante da omissão, foi necessário interromper o próprio trabalho para levantar documentos e encaminhá-los ao Ministério Público, questionando como é possível alguém receber esse valor enquanto servidores públicos de carreira não alcançam remuneração semelhante. O levantamento mais detalhado sobre a Fábrica de Cultura será protocolado apenas em janeiro, após a separação das denúncias, que envolvem também o imóvel tombado do Rádio Amador.

As promessas de implantação não se concretizaram, as obras realizadas no passado foram abandonadas e, desde então, o projeto permanece paralisado, mesmo após mudanças na condução da Secretaria de Cultura, que segue sob a mesma orientação política.

No caso do Instituto Federal e da Catedral, o que ocorreu?

Em relação aos casos da Cianê e do Instituto Federal, a avaliação é de que novos desdobramentos devem surgir em breve. Ainda sem acesso ao projeto, não é possível afirmar com certeza, mas a expectativa é de que, caso o Instituto Federal repita em Ribeirão Preto o mesmo modelo adotado em outras cidades, o projeto não seja aprovado. A percepção é de que o que foi imposto "na marra" acabou sendo aceito, enquanto pontos que exigiam debate e questionamentos técnicos não avançaram. Em vez de diálogo, prevaleceu a lógica da imposição, com decisões tomadas de forma abrupta, sem construção coletiva.

Quanto à Catedral, temos um problema seríssimo. Obras começaram sem aval do Conselho. Existe notícia de repasse milionário, em acordo judicial, sem projeto aprovado. Isso é gravíssimo. Se confirmado, ultrapassa o erro administrativo. Já acionamos técnicos. Se necessário, haverá embargo. Se acontecer algo grave, a responsabilidade recai sobre quem autorizou ou se omitiu.

E o futuro dessa relação com a Prefeitura?

Vejo acirramento. Enquanto insistirem em atropelar ritos, haverá confronto. Não somos contra obras. Somos contra ilegalidades e agressões ao patrimônio e ao meio ambiente.