'Não dá pra largar a Cultura. É cachaça'
Fernando Kaxassa, que comanda o lendário Cineclube Cauim, fala sobre novos projetos e conta sua trajetória
, atualizado
Compartilhar notícia
Em meio à poeira de tempos difíceis — ditadura, cortes culturais, crise e pandemia — o Cauim resiste. Comandado por Fernando Kaxassa há 46, o grupo se reinventou, trocando o antigo espaço de 900 lugares por uma sala de 250 assentos na Olavo Bilac, construída com financiamento coletivo.
Ainda hoje, o Cauim pulsa com o projeto Escola Vai ao Cinema, que leva cinema, shows e debates a uma nova geração. Otimista por naturez, o produtor cultural conta um pouco de sua trajetória nessa entrevista exclusiva. Fala sobre a cultura em Ribeirão, Sócrates, amigos e do jovem idealista que queria derrubar a ditadura pela artes. Confira a íntegra.
Jornal Ribeirão: Recentemente, o Cauim mudou de espaço, do antigo Bristol para uma sala de 250 lugares na Olavo Bilac. O que motivou a mudança?
Fernando Kaxassa: O Cauim evoluiu de um grupo de teatro para um cineclube e, depois, para uma agência cultural multifacetada. A mudança do antigo prédio, embora desafiadora, foi estratégica devido a problemas logísticos, custos elevados e exigências de adaptação. Já estávamos para sair de lá há algum tempo.
Além de ser alugado, o prédio tinha um problema: quando assumimos o espaço, ele era maravilhoso, com 900 lugares. Com o tempo, por ser muito antigo, os bombeiros foram impondo adaptações — tira isso, põe alarme, aumenta corredor — e a capacidade caiu para quase 600.
A estrutura se tornou muito cara de manter. O novo espaço foi construído durante a pandemia, com financiamento coletivo e empréstimos, tornando-se um centro cultural sustentável e agregador para diversos grupos.
Como o novo espaço otimiza as atividades do Cauim e quais são seus projetos principais?
O espaço é otimizado pelo projeto Escola Vai ao Cinema, reconhecido internacionalmente, que ocupa o horário comercial. A sala recebe mostras de cinema, shows, feiras e debates, com foco em sustentabilidade, reaproveitamento de água e luz. O local nunca fica parado.
Vocês acabaram juntando toda uma cena cultural muito forte num lugar só, né?
É, porque esse pessoal é a coisa mais louca do mundo. No início, muitas ONGs foram formadas a partir do Cauim, cada uma numa área da cultura. Agora vivemos o movimento inverso: juntar todo mundo no mesmo espaço. E otimizamos.
É difícil trabalhar com cultura hoje no Brasil?
Sempre foi difícil. Tivemos muitos momentos complicados: ditadura, fechamento da Embrafilme, cortes no Ministério da Cultura. O Cauim sobreviveu graças a um couro incrível, ao apoio de emendas parlamentares de diversos partidos e ao avanço tecnológico, que facilitou a difusão do cinema apesar dos altos custos dos equipamentos.
Como começou em você esse tesão pela arte?
No começo, nós éramos muito jovens. Vim para Ribeirão para fazer teatro. Depois fui para Ciências Sociais, tinha cinema, e do cinema virei cineclube.
Mas, na verdade, estávamos de saco cheio da ditadura militar. Queríamos fazer um evento para derrubar o Geisel — era o nosso sonho. Eu tinha produtora de televisão e comecei a dirigir propaganda e programas de TV, que sustentavam o grupo. Outras pessoas foram chegando: Sócrates, Sérgio Ferreira, Clotilde, depois Odônio, Marcelo. Chegou muita gente nova.
Há alguma particularidade na cena cultural de Ribeirão Preto?
A cena cultural de Ribeirão se diferencia pela forte tradição de união entre artistas e grupos, exemplificada pela mobilização para salvar o Pedro II. Essa união é crucial para manter projetos culturais na cidade. Ribeirão tem tradição única: o Minaz, teatro de graça, grupos unidos — isso é raro.
Qual sua perspectiva para o futuro da cultura e do Cauim?
Sou um otimista. Não podemos parar. Um dia disseram que a esquerda não pode ser otimista, então eu disse que eu não podia ser de esquerda.
Como analisa a nova geração que está contigo no Cauim?
Vejo com entusiasmo a chegada de novos talentos, que garantem a continuidade do trabalho e o legado cultural da instituição.
Quais foram os momentos mais difíceis enfrentados pelo Cauim ao longo da história?
O Cauim, com quase 50 anos, enfrentou vários períodos críticos. Nasceu durante a ditadura. Depois veio Collor, que fechou a Embrafilme, e ficamos sem filmes para exibir. O governo FHC promoveu a retomada, mas foi com Gilberto Gil, no governo Lula, que voltou a se falar em difusão. Iniciamos um projeto que passava por 25 cidades.
Depois de 2010, o setor enfraqueceu e culminou no governo Michel Temer, que esfacelou o Ministério da Cultura. Então veio o governo Bolsonaro, que extinguiu a pasta. E depois, a pandemia.
Vendi livros e coisas pessoais para garantir que ninguém ficasse sem receber. Agora ainda é difícil, mas vai se normalizando. Nunca foi fácil.
Qual seu maior orgulho?
É o que fazemos no Escola Vai ao Cinema. Já estivemos na França, em Cuba, em vários lugares por causa desse projeto. É muito difícil: exige logística e apoio. O programa existe porque o pai do aluno de hoje frequentou o projeto no passado. É o carro-chefe, mantém a gente vivo. Ocupamos um horário que a cultura normalmente não ocupa: segunda a sexta, das seis da manhã às cinco da tarde. É um projeto lindo. O Sócrates costumava assistir às crianças assistindo aos filmes e sempre se emocionava. Eu faço isso às vezes, e é sempre gratificante.
O Cauim tem partido político?
De forma nenhuma. Recebemos emendas de diferentes partidos: Boulos (PSOL), Russomanno (UP), Baleia Rossi (MDB), Léo Oliveira (MDB), o hoje ministro Padilha (PT). Já teve até emenda do Novo. As pessoas ajudam porque veem o trabalho. Isso facilita muito. Não tem política partidária lá dentro.
A tecnologia ajuda ou atrapalha?
Facilita, mas ficou cara. Antes era impossível passar 21 filmes de um ciclo francês; não havia cabine para armazenar as latas. Hoje vem tudo em HD, liberado via satélite. Mas o equipamento é caríssimo: um projetor custa R$ 800 mil, financiado em 15 anos. Além disso, hoje existem as emendas, a Lei Rouanet e o ProAC — ajudam muito.
Dá para largar o trabalho com cultura?
Não, é cachaça mesmo. É a velha vocação, meu irmão. Você é jornalista, está fazendo um jornal impresso. Sabe exatamente do que estou falando: a gente não larga. Outro dia li uma matéria em que você contou a história de um vizinho, no Jornal da Vila, do Fernando Braga. Fiquei tão emocionado que pensei: qualquer dia preciso tomar uma cerveja com ele para conversar essas coisas. O Braga, por sinal, é o responsável por eu estar em Ribeirão.
Como assim?
Estávamos eu, ele e o Zé Maria. Eu falei: "Eu vou embora". O Braga me deu um esporro: "Você vai embora, ô cacete? Você foi aceito na cidade, todo mundo gosta de você, e você vai embora?". E eu fiquei até hoje.
Então é essa a loucura em que a gente está. Vamos fazendo, conseguindo manter. Difícil sempre foi, mas acredito que vai melhorar. O pessoal fala que eu sou otimista — e eu sou otimista pra caramba.
Vou te contar uma coisa louca. Eu não tenho carro, nunca dirigi na vida, nem sei sentar do lado do motorista. Então eu ando a pé, ando muito. Adoro andar e faço projeto andando. Às vezes alguém liga: "Cara, preciso de você aqui agora". Aí pego um táxi. Não sei chamar Uber, meu telefone é uma tristeza. Sou disléxico, meu teclado é ABCD e eu não amarro sapato. É uma tristeza.
Pego o táxi, chego e pergunto: "Quanto deu?". "Ah, puta que pariu, Cachaça… eu fui no teu cinema de graça, meu filho foi, meu neto foi". E é assim na feira, nas lojas, nos bares. E do bar eu não reclamo — até gosto.