'Cassamos mais que o AI-5'
Kaleo Dornaika Guaraty, advogado especializado em direito eleitoral, conta detalhes sobre a cassação de parlamentares cujos partidos foram condenados por fraude às quotas de candidatura e fala sobre o futuro da Operação Sevandija
, atualizado
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Nem toda crise significa, necessariamente, um problema. E, na política, o advogado Kaleo Dornaika Guarty, especializado em direito eleitoral, vem aproveitando o cenário um tanto quanto caótico para se referenciar como um dos grandes especialistas brasileiros sobre o tema.
Nas duas últimas eleições, o escritório do qual faz parte teve o maior volume de ações e cassações de políticos eleitos no Estado de São Paulo, superando inclusive o Ministério Público: 114 pessoas eleitas perderam os cargos por conta de ações patrocinadas pelo grupo nos anos de 2020 e 2024.
Nascido em Araraquara, é formado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, por onde também concluiu seu mestrado em pesquisa que abordou o discurso de ódio no direito eleitoral. Mora hoje no Rio de Janeiro e atua no prestigiado escritório Ribeiro de Almeida Advogados Associados, embora continue a atuar na região. Autor de guias jurídicos sobre filosofia do Direito e Direito eleitoral, concedeu entrevista ao Jornal Ribeirão no intervalo entre duas audiências. Confira.
JORNAL RIBEIRÃO: Começamos com a Sevandija, que completou um ano em setembro. Qual sua análise? Acredita que o conteúdo da operação Spoofing pode embasar uma nulidade?
Kaleo Dornaika Guaraty: Em abril de 2024, o ministro Nunes Marques restabeleceu a validade das interceptações telefônicas usadas pelo Gaeco/MP na Sevandija, destacando que não houve vício de fundamentação e que é possível a fundamentação per relationem, ou seja, quando o juiz aproveita as razões do MP/Polícia para deferir e prorrogar escutas. Foi uma reviravolta em relação a decisões que haviam anulado as provas. Como se tratava do único meio de prova no caso, este é o aspecto mais decisivo que temos.
Em setembro de 2025, o julgamento no STF sobre a validade dessas interceptações foi suspenso por pedido de vista de Gilmar Mendes; até aqui, somente o relator, Nunes Marques, votou para manter as escutas. Portanto, o tema ainda está pendente, mas com uma tendência a validar as escutas na Sevandija.
Na Operação Spoofing temos um cenário um pouco diferente: o STF permitiu o acesso de defesas às mensagens (como no caso Lula), mas há forte controvérsia sobre licitude e autenticidade. Ministros como Nunes Marques, Fachin e Rosa Weber têm se posicionado contra o uso do material como prova (obtido por hackeamento), enquanto Gilmar Mendes admite, em tese, prova ilícita pró réu por proporcionalidade. É um tema novo e polêmico. É justo utilizar provas obtidas ilicitamente na defesa ou o acervo deve ser ignorado? Ou ainda: é possível deliberadamente impedir que provas obtidas ilicitamente afetem o julgamento do magistrado?
Voltando à Sevandija, em linhas gerais temos decisões judiciais prévias e fundamentadas validando escutas, com entendimento favorável do relator no STF; mas a palavra final ainda depende do julgamento colegiado. O risco de um "desmoronamento" da operação, todavia, é real. É um risco que dialoga com a necessidade de cuidado institucional com as decisões judiciais, especialmente em casos de repercussão social. É trivial, mas não custa mencionar a necessidade de fundamentação técnica, inclusive no caso das interceptações telefônicas, com a descrição clara da subsidiariedade e escopo.
O Judiciário, e especialmente o STF, tem estado no olho do furacão. A Lava Jato foi anulada por incompetência e por suspeição; no caso de 8 de janeiro, pode ocorrer o mesmo?
O STF manteve a decisão que declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, anulando condenações e remetendo à Justiça do Distrito Federal em abril de 2021. Depois, o STF confirmou a suspeição do então juiz Sergio Moro — anulando atos e provas correspondentes. Ou seja, ali houve nulidades estruturais por competência e violação a garantias.
Agora, em setembro de 2025, o ministro Luiz Fux votou por anular o processo por incompetência do STF (réus sem foro) e por cerceamento de defesa ("tsunami de dados"), sustentando que, se ficar no Supremo, deveria ir ao Plenário e não à Primeira Turma. Mas formou-se maioria no STF para rejeitar essas preliminares (incompetência, nulidade por data-dumping, etc.). Ou seja, até aqui o Tribunal não equiparou o caso de 8 de janeiro ao paradigma da Lava Jato — o curso do processo foi mantido na Primeira Turma sob relatoria de Alexandre de Moraes.
No momento, não se pode dizer que 8 de janeiro repetirá o desfecho da Lava Jato por incompetência, mas tudo é possível. A composição da Corte vai mudar, e uma ação revisional traria de volta a discussão da competência, podendo levar à nulidade completa do processo.
Falando sobre nossa aldeia. A política local tem passado por uma série de pedidos de cassação. Uma delas, do vereador Brando Veiga. Como analisa?
O pedido de cassação do vereador Brando Veiga segue dois caminhos: um político e um jurídico. Embora a Câmara tenha rejeitado a representação por ampla maioria, as investigações do Ministério Público continuam, com possível reflexo na Justiça Eleitoral, caso se confirme abuso de poder político ou econômico.
Se houver um processo judicial de cassação do vereador perante a Justiça Eleitoral, podemos ter expectativas de celeridade e irreversibilidade. A diferença essencial está no rito: enquanto a Sevandija ficou marcada por longas discussões sobre nulidades e validade de provas, na Justiça Eleitoral o processo é rápido (prazos de 5 dias, que deixam os advogados sem dormir), técnico e eficiente, raramente anulado por vícios formais. Isso significa que, numa eventual cassação eleitoral, o risco de decisões frágeis ou revertidas é muito menor.
Sobre as mudanças de 2021 na Lei de Improbidade Administrativa, considera que foram um avanço ou um problema?
Até 2021 havia, sim, uma banalização do uso da ação civil pública por improbidade: muitas petições eram pouco individualizadas. A Lei 14.230/2021 passou a exigir responsabilização subjetiva com dolo específico, extinguiu a modalidade culposa, reforçou tipicidade e segurança e introduziu o Acordo de Não Persecução Cível (art. 17-B).
O STF firmou as teses do Tema 1.199 nessa mesma linha, e o STJ vem alinhando a jurisprudência nesse sentido. Resultado: ficou mais difícil punir o gestor por meras irregularidades formais, e diminuiu o espaço para ações temerárias; por outro lado, os casos com prova robusta de dolo seguem viáveis.
O senhor tem conseguido sucesso em muitos casos envolvendo a política de cotas em candidaturas, algumas vezes mudando completamente a composição de Câmaras Municipais. A fraude ainda é uma realidade?
Sim — infelizmente, os números mostram que as fraudes à cota de gênero seguem aparecendo com frequência; felizmente, a Justiça Eleitoral vem tratando o tema com cada vez mais rigor e previsibilidade em virtude da Súmula 73.
Na prática, sim: anulações de chapas inteiras devem continuar quando a prova indicar candidaturas femininas fictícias (inexpressividade de votos, ausência de campanha, prestações inconsistentes).
Do nosso lado, o retrato operacional confirma a tendência: tivemos o maior volume de ações e cassações no Estado de São Paulo, superando inclusive o MP como um todo, somando 114 cassados em 2020 e 2024. Depois do julgamento de Serra Azul, brincamos que havíamos batido o "escore do AI-5", que cassou 110 deputados federais.
Em 2025, percebemos o TSE mais rigoroso, porém mais previsível, o que aumenta a segurança jurídica: quem cumpre a cota de forma material não deve temer; quem frauda deve esperar a sanção coletiva sobre a chapa, como já sedimentado.