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Luiz Rufino
O Irã ocupa uma posição singular na dinâmica entre soberania divina e soberania popular. Desde a Revolução de 1979, o regime teocrático afirma ser a expressão da vontade de Deus, guiado por líderes religiosos alegadamente imbuídos de legitimidade espiritual. No entanto, essa soberania divina, na prática, é erguida sobre pilares frágeis. Não se sustenta em Alá, mas em um discurso profundamente humano, utilizado como ferramenta de manutenção do poder. A "vontade divina" que governa o Irã é nada mais que um expediente para silenciar dissidências e legitimar a violência estatal – uma farsa de santidade mascarando uma realidade de cassetetes e prisões.
Entretanto, a fissura mais grave na estrutura do regime está em sua relação com o povo – especialmente com a juventude. Hoje, mais de 60% da população iraniana tem menos de 35 anos, o que significa que a maioria nunca conheceu outro sistema fora do regime islâmico. Esses jovens, nascidos no pós-revolução, não carregam as esperanças ou ilusões que motivaram seus pais em 1979. Pelo contrário, convivem diariamente com uma repressão que não conquista corações, apenas os sufoca. Não existem dados oficiais precisos sobre a porcentagem de jovens insatisfeitos com o regime, mas é amplamente reconhecido que esse índice é alto. Eles questionam abertamente, ainda que em espaços privados, a legitimidade do regime e a brutalidade com que ele governa. O hijab (véu), enquanto símbolo, tornou-se uma metáfora desse descontentamento: não se trata apenas do véu imposto às mulheres, mas do peso de um sistema que sufoca a liberdade.
Ainda assim, um regime totalitário não desmorona facilmente. Ao contrário, ele se endurece diante de qualquer ameaça. A insatisfação da juventude, por maior que seja, enfrenta as profundas raízes do poder teocrático, sustentado por mecanismos de vigilância, repressão e propaganda. Essa dinâmica conta com um agravante: o aumento da pressão externa, especialmente os recentes ataques americanos. O regime utiliza a presença do "inimigo externo" como estratégia de sobrevivência, fortalecendo o nacionalismo ao mesmo tempo em que intensifica a repressão. Mas esse jogo tem limites. Quanto mais brutal e fechado se torna o regime, mais minada fica sua legitimidade perante a própria população. A longo prazo, essa combinação de descontentamento interno e pressões externas pode provocar um colapso.
E se houver uma insurreição? Essa é uma questão delicada. Muitos jovens desejam mudanças, mas a história das transições políticas no Oriente Médio não inspira otimismo. Regimes semelhantes ao do Irã, quando derrubados, frequentemente cederam espaço a governos igualmente opressivos. O Egito, com a Primavera Árabe em 2011, é um exemplo emblemático: o levante popular derrubou uma ditadura apenas para permitir a ascensão de um governo totalitário de outra natureza. O que começa como um movimento democrático, pautado na liberdade, frequentemente desemboca em outro regime autoritário, seja pela falta de preparo institucional, seja pelo vazio de poder gerado no processo.
Isso nos leva à parábola da monarquia que degenera em tirania. Platão já nos alertava que a monarquia, na busca por estabilidade, pode facilmente se transformar na ditadura de um só homem. Do rei, que governava com certa legitimidade divina ou popular, chega-se ao tirano, cujo poder repousa no medo. O Irã ilustra exatamente esse ciclo, mas com uma diferença sutil: não foi apenas uma monarquia que se degenerou. Foi uma teocracia, apresentada como a verdadeira soberania divina, que corroeu qualquer traço de justiça ou liberdade. Uma insurreição poderia romper esse ciclo? Ou apenas levar a um novo tirano – alguém que substituiria o turbante pelo uniforme militar, mas preservaria a mesma lógica de opressão?
Essa é a sombra que paira sobre qualquer possibilidade de mudança no Irã. O descontentamento popular é real, e a juventude carrega o potencial de desafiar o sistema. No entanto, não há garantias de que sua revolta, se ocorrer, levará a algo diferente. A soberania popular, para florescer, depende de instituições e compromissos que não se constroem apenas no calor de uma revolta – muito menos em um contexto de repressão como o do Irã. Sem esses elementos, o que começa como insurreição pode se transformar apenas em um novo ato de um mesmo teatro, com novos atores, mas o mesmo enredo.
*é cientista político e professor