Outro fator que contribui para esses impactos e que afeta inclusive a saúde dos familiares das vítimas é a demora nos processos judiciais. A demora gera bastante frustração porque às vezes as pessoas ficam exaustas, diz Carla Osmo. Todo o processo é muito violento, muito desgastante, inclusive a demora [do Judiciário]. São vários sofrimentos que as famílias têm e um deles é a falta de algum tipo de resposta do Estado. E essa omissão do Estado também tem um significado de desvalorização do acontecimento e desvalorização da vida, deixando [essas famílias] um pouco à margem", completa.
Além disso, explicou ela, essas famílias ainda sofrem a estigmatização por terem algum membro da família morto por um policial. Há o medo da polícia e o sentimento de que a vida não tem valor ou de que o Estado não dá nenhuma importância seja para a existência daquela pessoa que morreu seja para a vida dos familiares [daquela vítima]. São danos muito severos.
Responsabilização
Para aliviar essa dor e também em busca de seus direitos, muitas dessas famílias acabam buscando na Justiça um reconhecimento sobre a responsabilidade do Estado por essas mortes.
Não são apenas os agentes individuais que foram condenados que tiveram responsabilidade [sobre as mortes]. O Estado tem responsabilidade institucional pela chacina. E olhar para isso é muito importante porque nos ajuda a pensar que essas chacinas se inserem em um histórico de episódios de violência de Estado e mesmo de execuções coletivas no estado de São Paulo, diz a professora da Unifesp.
Em geral, as famílias entram com processos individuais para buscar essa responsabilização seja por meio de advogados ou da Defensoria Pública. Nós começamos a fazer um acompanhamento de um conjunto de processos [relacionados à Chacina de Osasco, Itapevi e de Barueri]. E hoje nós temos uma relação de 16 processos [tramitando em âmbito civil]. É possível que tenha outros. Mas, enfim, esse é o número que nós temos, aponta.
Desse total de processos que pedem a responsabilização do Estado e indenização às famílias das vítimas, dez foram movidos por parentes das vítimas e um deles por um sobrevivente da chacina. Cinco processos tramitam em segredo de Justiça, por isso, não é possível saber mais detalhes sobre eles.
Entre os processos que não estão sob sigilo, apenas dois chegaram à fase de execução, mas sem que as indenizações tenham sido pagas até o momento. Esses processos que pedem responsabilização do Estado são processos que continuam tramitando com uma morosidade imensa. Dentre esses 11 processos, a gente tem uma média de seis ou sete anos de duração sem que eles tivessem sido concluídos. Dois desses processos, um de 2018 e outro de 2020, sequer tiveram sentença ou uma decisão de primeira instância. Existem pesquisas que apontam que essa demora excessiva acontece durante a etapa da execução, depois de já ter uma sentença definitiva, afirma Carla.
"Não temos base para afirmar que se trata de demora fora do padrão no Judiciário paulista, mas é uma demora que está em absoluto descompasso com a gravidade da violência e a dimensão dos danos provocados às famílias, especialmente tendo em vista que parte das mães das vítimas e certamente as avós são pessoas idosas e que diversas vítimas deixaram filhos crianças. Vale lembrar que a participação de policiais militares está demonstrada e nem é contestada", acrescenta a coordenadora.
O acompanhamento e estudo que vêm sendo feitos pela Clínica de Direitos Humanos da Unifesp em relação a esses processos também demonstra outra dificuldade enfrentada pelas famílias: o Estado sempre contesta as decisões, o que aumenta o tempo para que as famílias sejam ressarcidas.
"A advocacia do Estado contesta as demandas das famílias nos processos, trazendo uma excessiva exigência de provas para que se determine o pagamento de pensão, de emprego formal e de dependência econômica dos familiares em relação à vítima, bem como para que sejam ressarcidos os gastos que a família teve com o funeral. Por vezes levanta uma suspeita infundada de que a vítima poderia exercer uma atividade ilícita. Defende ainda uma presunção de que a vítima, caso tivesse continuado viva, teria sempre uma remuneração muito baixa pelo seu trabalho. E argumenta em favor da fixação de valor baixo para ressarcimento de danos morais para evitar um 'enriquecimento sem causa' das famílias, como se o sofrimento das famílias fosse menor apenas por elas serem pobres", afirma Carla Osmo.
Dez anos
Passados dez anos desses acontecimentos, Carla Osmo diz que a sensação, para as famílias, é de que a violência continua se perpetuando.
Esse não responder é muito violento, diz a professora. Elas [mães da vítimas] insistem em dizer que o tempo não apazigua: é como se tivesse acontecido agora. A angústia da espera gera sofrimento, mas, ao mesmo tempo, a atualidade do sofrimento, que faz com que pareça que a violência da morte aconteceu agora, acrescenta.
Embora a lembrança desse evento ainda seja dolorosa para as famílias, a coordenadora defende que é importante continuar a falar sobre a chacina para evitar que novas violências como essa continuem ocorrendo no país. O apagamento tem relação com a continuidade e com a persistência da violência de Estado. O apagamento do que foi a violência de Estado nesses diversos episódios de execuções coletivas ou de massacres que aconteceram no estado de São Paul tem relação com a continuidade da violência, diz.
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que o inquérito policial instaurado pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) para investigar o caso foi concluído em dezembro do mesmo ano, com a identificação e indiciamentos de oito pessoas sete policiais militares e um GCM [guarda civil metropolitano]. Segundo a secretaria, todos os PMs envolvidos no caso foram expulsos da corporação. A reportagem procurou também o governo paulista para comentar o episódio e as indenizações, mas não obteve retorno até o momento.