Autoras contemporâneas dão voz a trabalhadoras domésticas na Flip
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A brasileira Lilia Guerra e a chilena Alia Trabucco Zerán discutiram, na 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), as duras condições das trabalhadoras domésticas, por meio de suas obras literárias mais recentes. Os romances O céu para os bastardos e As limpas têm como personagens principais mulheres em trabalho doméstico, função que carrega uma forte herança da escravização e reflete, ainda hoje, a desigualdade social nos países latinos.
São três gerações de trabalhadoras domésticas na família de Lilia. Todas as mulheres da minha casa eram trabalhadoras domésticas, minha avó, minha mãe e minha tia. Desde que eu acompanhava a rotina dessas mulheres, sempre conversando, contando e comentando as coisas que aconteciam, eu projetava essa carreira para mim também, contou na mesa intitulada A casa, o mundo.
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Quando criança, Lilia acompanhava a avó nas casas em que trabalhava. Depois, a mãe, até que ela mesma iniciou no trabalho doméstico.
Embora a minha avó sempre tomasse cuidado para que eu não me sentisse fazendo um estágio e como se eu tivesse me preparando para também ser uma trabalhadora doméstica, eu sentia isso. Me parecia que não seria digno da minha parte se eu também não tivesse experiência. Eu esperava por ela, como se fosse uma coisa inevitável, revelou Lilia.
A autora relatou que, no momento da escrita, recorreu à memória e às experiências vividas no contexto do trabalho doméstico. Eu observava a minha avó e observava também os empregadores. Na hora de escrever, eu tinha a experiência da funcionária e podia empregar muitas coisas ali. Na hora de formar o perfil dos empregadores, dos patrões, eu recorri a essa observação, a essa escuta, à lembrança e à memória para fazer as construções.
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Violência de classe
Já o romance da chilena Alia Trabucco Zerán não traz componentes autobiográficos, mas tem uma base em pesquisas, observações e escuta. Ela ressalta que as diferenças de classe e a violência de classe estão na base desse tipo de trabalho.
Parte da origem do livro tem a ver com uma pesquisa em que eu estudei a história do sindicato das trabalhadoras domésticas chilenas, que surgiu no início do Século 20. Suas lutas eram até com as próprias trabalhadoras proletárias, que as negavam como trabalhadoras porque negavam esse trabalho, contou Alia, .
A escritora relembrou da reação que o livro causou em leitores que chegaram a entrar em contato com ela. Três mulheres indignadas me contataram, furiosas, me dizendo diretamente, sentindo-se muito atacadas e ressentidas, que elas jamais tratariam suas empregadas domésticas daquele jeito. Três mensagens que salvei porque achei que eram reveladoras do que um livro pode gerar e como pode incomodar, a ponto de se sentirem interpeladas.
Por outro lado, mulheres, especialmente aquelas da terceira geração, o que é semelhante ao que Lilia está nos contando, [ou seja,] netas e filhas de empregadas domésticas que depois não seguiram essa carreira, não seguiram esse caminho, disse à plateia.