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A relação entre cultura e personalidade é, no Brasil, uma tragédia de São Genésio — como aquele espetáculo ancestral encenado à exaustão, noite após noite, até que seus atores já nem soubessem para quem ou para que representavam, tornando-se apenas repetidores de gestos sem alma, mecânicos e vazios. Se outros povos constroem sua alta cultura a partir dos extremos da vida, dos terrores e dos êxtases do espanto, nós por aqui preferimos o alívio rápido do anedótico, do grito, da imitação.
Falta-nos, talvez, aquela espécie de assombro fundamental tão cara a Aristóteles: não o susto vulgar, mas o susto de raiz, que se entranha e obriga o homem a mirar o abismo, perguntando-se “quem sou?” diante de Deus ou do nada.
Aquilo que se vê nas grandes literaturas — Dante, Shakespeare, Goethe, Dostoiévski — é a materialização artística do desespero humano mais profundo. Ali, a experiência não é posta à mesa de bar, mas transformada em símbolo, em catarse e, sobretudo, em verdade. Por aqui, quando a literatura ensaia registrar o sofrimento nacional, já tropeça: tudo se falsifica, tudo se dilui em estereótipo sociológico ou manchete de jornal.
Eu, confesso, fui salvo cedo pelos livros — dei sorte de começar com Goethe, e Goethe dizia sem rodeios: “O dever — aquilo que se exige de nós — não é senão a necessidade interior de agir”. Trabalhar, criar os filhos, carregar o peso do dia. Não há artista que esteja isento disto, nenhum talento artístico, por maior que seja, justifica abandonar o dever de trabalhar e sustentar os próprios filhos. Rousseau, afinal, era esse essencialmente puro que muitos pregam? Jogou os filhos no orfanato, viveu sua pequena comédia e quis vender isso como liberdade.
O paraíso não conhece plano de vida: sem dificuldade, não há sentido; sem trabalho oferecido como trajeto em direção ao bem, não há verdadeira realização. Transformar trabalho apenas em fardo é retroceder à condição de escravo, mas até entre os escravos houve grandeza: Epicteto! Escravo de um homem brutal, fez da servidão o ápice de sua filosofia: não disse que não podia ser filósofo porque era escravo; fez da própria escravidão sua força, sua lição moral.
Eis que o brasileiro médio constrói sua biografia sobre a areia movediça da fraude. Toda carreira digna vira caricatura de esperteza; toda prosperidade, orgulho feio e parasitário. Nosso tipo dominante é o carreirista vaidoso, o malandro cordial, o desonesto que sonha, ao enriquecer, em pisar sobre quem ficou para trás... Lima Barreto, com sua lucidez incômoda, anotou: “No Brasil, o criado é considerado coisa, e não gente.” — quadro cruel, abjeto, tão nosso, em que a felicidade só parece possível cercada por uma legião de serviçais de obediências compradas.
A vida começa na pobreza; nus viemos ao mundo. E esse deveria ser o ponto de partida para uma aprendizagem humilde sobre como se trabalha, como se carrega a própria cruz. A cruz, no fim das contas, é a estrutura da realidade, não um acidente; é nela e por ela que se constrói qualquer projeto de vida. Mas o brasileiro prefere enganar e ser enganado — espera de terceiros o sustento de suas vontades, enxerga o trabalho como condenação, nunca como dever, e se vangloria dos pequenos trambiques do dia a dia.
Não me espanta, então, que a massa apenas raciocine pelos clichês sociológicos, pelas fórmulas da imprensa, esquecida das lições da experiência direta, do espanto que engrandece e redime. Tudo o que não chega à imaginação vira engenho, e o imaginário nacional tornou-se pasto para modismos importados que nada dizem à vida real do povo. O destino comum é a frustração, a vocação abortada, a derrota erigida em Instituição Nacional... No Brasil, é preciso mesmo um milagre para dar certo — ou, quem sabe, um pacto com o próprio diabo!
Falta-nos a boa lição de Goethe, de Epicteto: trabalhar, criar, carregar, dignificar o fardo — e entender que no dever há a máxima expressão de liberdade. Até quando fugiremos do espanto necessário? Até quando a cruz parecerá, a cada brasileiro, um ultraje? Quando ela será, no fundo, a condição para algum sentido real? Eis aqui o drama nacional, exposto sem retoques: é o teatro da existência — e, nele, parecemos quase sempre preferir o papel do farsante à coragem trágica do Cristo.
* Cientista político e professor